Historico

A historia da Retomada.

Produzido por alguns apoiadores e apoiadoras da Retomada da Ponta do Arado Velho, e fruto da intimidade e cumplicidade no processo de resistir em solidariedade junto a eles, esse texto tenta transmitir as vozes que temos ouvido e as injustiças que temos presenciado, mas de jeito nenhum quer, nem pode, falar pelos Guarani que lá moram, muito menos pela comunidade Guarani em geral. 
As falas do seu Timóteo (na foto abaixo) foram retiradas dos diversos vídeos encontrados na internet, e de conversas pessoais com ele durante as nossas visitas. 

O COMEÇO

Na manhã de Sexta-feira 15 de junho, quatro lideranças Mbya-Guarani começaram mais uma retomada de terra,  na região da Ponta do Arado Velho, no bairro Belém Novo em Porto Alegre. 
Atualmente, a propriedade foi adquirida por um grande grupo de empresários do ramo imobiliário, organizados em torno da  Arado Empreendimentos Ltda, que planeja modificar a área destruindo a floresta e aterrando os banhados para construir um grande condomínio de luxo de mais de 1500 casas e ruas internas (um verdadeiro planejamento urbano), gerando mudanças drásticas no ecossistema local, ainda preservado.
 Em contraste, os Guarani mantêm uma forma de relação completamente diferente com o território. Cuidar da natureza é, antes de tudo, cuidar do seu povo. A natureza é concebida não como algo externo, mas é considerada como parte integrante da constituição dos corpos e espíritos.  
Karaí Timóteo, liderança político-espiritual na comunidade que hoje ocupa a Ponta do Arado, fala sobre o uso Guarani da terra:
“Natureza, é pra nós cuidar mesmo. É pra parecer assim, sempre. Aonde há aldeia guarani, não vai parecer colônia, não vai parecer vila. Porque nós amamos natureza, nos queremos ver sempre assim. Não é para cortar as arvores, apenas vamos colher aonde tem, pra fazer rocinha, onde tem capoeira mais fina, ali pode fazer. Mas onde tem mato alto não é pra derrubar não. Essa ai é pra preservar mesmo.”

  POR QUE RETOMADA?

 A ocupação Guarani desse território se remete há mais de 2000 anos antes da presença do homem branco, dos seus projetos de civilização e desenvolvimento, das suas leis e seus projetos imobiliários. Tal ocupação é um fato comprovado por diversas pesquisas arqueológicas na região, e reconhecida pela Prefeitura de Porto Alegre,pelo Instituto Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN) e pela própria empresa construtora, que usa isso como mais um atrativo para promoção do seu empreendimento elitista e gentrificador.
Essa ocupação ancestral do território hoje chamado Brasil, Rio Grande do Sul ou Ponta do Arado Velho, foi histórica e sistematicamente negada pela sociedade colonial dos brancos, que se apropriou das terras e mudou a maior parte da paisagem para construir cidades, estradas, barragens e plantios, muitas vezes usando mão de obra dos próprios indígenas.  Hoje, igual que no passado, são destruídos ecossistemas inteiros, expulsando seus antigos moradores, e colocando-os em áreas mínimas, improdutivas, e alheias aos seus costumes e necessidades.
  Numa outra fala, Timóteo comenta sobre a perseguição e a impossibilidade de viver suas tradições:
 “Desde 1500 até agora, nós não temos aldeias suficientes pra nós. Nós sofremos bastante. Perdemos tanto. Sempre pensamos, e temos dor no coração, por não termos lugar onde viver a vontade, lugar para as crianças poder brincar.
[A aldeia onde nós morava] tinha 47 hectares, más a maioria era só morro. A parte mais plana foi usada para fazer as casas. Mas também tem muita areia. Areia grossa assim, com pedras. Não tem terra boa pra plantar. Não tem espaço para as mais de 60 famílias. Então nós estava lá. No meio da cidade, no meio da colônia… O que que vão aprender ali as crianças? Vão aprender cultura do branco! Nós não falamos bem português. Isso não é o mais importante pra nós. Por que falar bem português?  Não adianta. Nós somos guarani. Temos que saber mesmo escutar nossa palavra.”
 Muitos indígenas experimentam diferentes tipos de violência física, material e simbólica que também se evidencia através da memória das lutas dos seus antepassados. O racismo na escola, o trabalho precarizado, o encerramento em pequenos espaços de terras. Seja confinados pelo Estado em áreas impróprias para sua forma de vida, cercados por monoculturas e grandes fazendas e forçados a se intoxicar com os agrotóxicos, ou na beira da estrada sujeitos a atropelamentos. A opressão vivida por essas comunidades continua aumentando desde o primeiro contato com o homem branco. Porém, essas comunidades resistem e, muitas vezes, com alegria e luta, encontram formas para enfrentar seus opressores. É assim que processos de Retomadas de terras aconteceram ao longo da história dos povos indígenas. 
 “Como é que vamos ficar daqui pra frente? Nós pensamos muito, muito mesmo nisso. E até doença isto é pra nós. Mas a traves do nosso criador, nós temos força. Ano a ano, pensamos para conseguir uma aldeia pra nós.  Então o que que vamos fazer ali? Ficar parados sem pensar nada? Não. Temos que pensar para o futuro. O que que nos precisa? e o que que é mais importante pra nós? Por isso nós cheguemos aqui.” Ressalta Timóteo.
 O local foi encontrado nos sonhos e através do contato com os antepassados que as “rezas” permitiram. Consultou-se Nhanderu e os espíritos ancestrais onde encontrava-se a terra sagrada para construir essa aldeia, para curar as pessoas, as crianças, e viver do jeito guarani: o Nhande Reko. 
  Existe uma ligação muito forte entre o mundo espiritual e o território. A Retomada carrega consigo significados enraizados nos modos de viver e se relacionar com o mundo que os Guarani vêm herdando dos seus antepassados. A terra não pode ser considerada como simplesmente um meio de produção, ela é o espaço de relações entre seres espirituais, animais e humanos, todos compondo as fontes da sua vida social, ecológica, econômica, política e espiritual. É o espaço onde serão praticados os rituais, onde encontram-se os materiais para a construção da Opy, a casa de reza, é o lugar de moradia das plantas sagradas e os animais de importância para a cultura Guarani. É um espaço que precisa ser equilibrado para manter a conexão com os espíritos, os ancestrais, com as forças da vida, com Nhanderu.
 A Retomada na Ponta do Arado é mais uma recuperação de territorio que as comunidades indígenas vêm levando a cabo no Rio Grande do Sul e no Brasil inteiro. Essas retomadas são as medidas que essas comunidades encontraram para pressionar o governo a fazer respeitar seus direitos constitucionais por um lado, e por outro, como resposta diante do descaso e desinteresse dos órgãos estatais para com essas populações. São formas autônomas de ação social para recuperar o que lhes foi historicamente expropriado através dos diversos processos coloniais. Por isso, quando fala-se em retomada, devemos entendê-la não só como recuperação da “terra”, como objeto, senão mais que nada, a recuperação do territorio: uma serie de relações sociais, culturais e espirituais que, com ela, também foram reprimidas e expropriadas. Recuperar a terra, é devolver a materialidade à memória destas relações para que esta possa ser novamente vivida, (re)criada e (re)inventada na prática.
  

O CONFLITO

 “Nós cheguemos aqui. Mas todo mundo já ficou curioso, se assustaram. “Por que que vocês vieram aqui?” “Aqui é propriedade particular” “Não é pra fazer aldeia”.”
Nesse caso particular, a comunidade decidiu, desde o primeiro momento, avisar as instituições estatais da sua vontade de retomar a área, iniciando um processo legal de reconhecimento da presença indígena, visando uma possível futura demarcação enquanto Terra Indígena. Mas a Retomada foi inviabilizada e invisibilizada desde o começo pela arbitrariadade da ação dos poderes locais que impediram a circulação, e removeu as famílias indígenas para outras áreas. A orla que a comunidade Mbya ocupa é reconhecida como área de preservação e como território federal da Marinha, mas, os morros e a mata são considerados como propriedade privada. 
 Isso representa um conflito de interesses entre o processo histórico dos Guarani de recuperação da sua terra ancestral usurpada, por um lado, e um processo de expansão capitalista na cidade, com a especulação imobiliária que proporciona o enriquecimento de um grupo empresarial, por outro. 
 Porém, a disputa se caracteriza por uma tremenda desigualdade: Os Guarani: 4 famílias que somam mais de 30 pessoas, contando idosos e crianças, ocupam uma ínfima parte de terra, isolados por uma cerca com sensores de movimento, sem possibilidade de plantar ou caçar, e contando como única forma de acesso um barquinho a motor. Enquanto isso, a empresa tem recursos de sobra como para pagar um grupo de seguranças armados para vigiar dia e noite os Guarani, e se dar ao luxo de cometer atos cruéis de violência contra a comunidade.
 Entre essas ações, podemos citar:
-Colocação de uma cerca em território federal (a orla), deixando a comunidade isolada entre o arame e a lagoa, sem outro meio de circulação fora o barco para receber visitas, alimentos e outros recursos, forçando a comunidade a passar fome, sede, frio. 
-Ataque noturno com armas de fogo na sexta 11 de Janeiro. Foram disparados mais de 20 tiros contra as barracas, com armas de uso militar (https://tinyurl.com/sul21-ataque-aos-guarani)
-Sabotagem do barco de um dos pescadores que fornecia transporte para a comunidade.
-Ameaças aos pescadores e moradores do bairro que dão apoio as famílias Guarani.
-Ameaças verbais constantes dos funcionários aos Guarani (especificamente ameaças de violência, morte, estupro, cárcere e sequestro). Os mesmos funcionários têm ameaçado envenenar os poços de água com agrotóxicos.
-Instalação de sensores de movimento na cerca. 
-Intimidação aos visitantes e apoiadores da Retomada.
-Nova tentativa de ataque noturno, com homens colocando tocas e atravessando a cerca. Os Guarani conseguiram impedir o seu avanço acendendo foguetes.
 O juiz Osmar de Aguiar Pacheco, da 1ª Vara Cível do Fórum Regional da Restinga, no processo por usurpação começado pela empresa, fez caso omisso dessas ações, e ainda reafirmou-as criando uma liminar de “PROIBIÇÃO DE INVASÃO E NAVEGAÇÃO DESTINADA AO DESEMBARQUE DE PESSOAS, MANTIMENTOS E EQUIPAMENTOS PARA O ACAMPAMENTO NO LOCAL, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA DE R$ 5.000,00”
 Atualmente, a liminar foi revogada após correição do Tribunal de Justiça, o juiz estadual foi substituído e o processo tramita agora na Justiça Federal.
 No meio do conflito, a comunidade do bairro Belém Novo, que historicamente soube aproveitar e cuidar da área com práticas de lazer familiar e de baixo impacto, respeitando suas características naturais, também sofre ameaças, a impossibilidade de continuar desfrutando da natureza, e temendo um possível desastre ambiental que o impacto que a implementação do projeto pode ter na região. 

COMO CONTINUA

 A situação política atual, determinada pela ascensão da extrema direita liberal no poder, garante para os próximos anos um drástico agravamento desta situação. O etnocídio é uma constante em qualquer momento da história do Brasil, independente de qualquer partido ou ideologia no poder. Todo governo foi cúmplice da expansão do capitalismo que se desenvolve, sempre, a partir de lógicas coloniais e da repressão aos indígenas cujo modo de viver se resiste à apropiação do territorio ao favor dos negócios e interesses políticos e de mercado.
 “Antigamente, qualquer pessoa podia entrar em qualquer pedaço de mato. Não precisava marcar. Mas essa lei foi o português que fez. Em qualquer lugar onde morar Guarani, tem que fazer demarcação. Então essa aí tem que cumprir. Não é nós que fez isso aí. Não é nós que fez a lei. É trabalho dos brancos. Isso é unicamente o que tem que fazer pra nós. Nós pedimos isso pra FUNAI, se poderia fazer relatório certinho, demarcar pra nós esse pedaço. Aqui queremos criar nossos filhos. Porque em qualquer outra parte não consigo mais. Não tem mais agua, não tem mais rio, não tem mais caça, não tem mais nada. Só no meio da colônia. Só capoeirinha. Tu podes chegar em qualquer aldeia. Não tem mais mato. Só pedacinhos. Como é que vamos viver? Que que vamos fazer daquela área? Nós vamos perder a nossa língua, nossa cultura, todo?”
É por isso que é muito difícil a situação para as retomadas. São poucas as instituições que de fato apoiam os indígenas. Menos ainda as que conseguem exercer pressão suficiente para gerar mudanças concretas em prol dos indígenas no âmbito judicial,  que costuma favorecer muito mais os poderosos. Resta a iniciativa autônoma de se afirmar no território, e através da solidariedade de outros membros e famílias das comunidades. Mas também tem o apoio que cada um de nós pode oferecer desde nosso lugar para fortalecer sua autonomia, expropriada pelos nossos antepassados. 
 Depois de 5 séculos de expulsão, perseguição e etnocídio, depois de mais de 500 anos de destruição e saqueio da sua terra sagrada, os povos originários retomam o que é seu. É uma Retomada da terra, que é abrigo e sustento, mas também uma Retomada da sua cultura: O fogo de chão, a comunidade, a espiritualidade, a brincadeira, a conexão, o sagrado dos vínculos, o amor pela vida.
 “Não ta na escrita, mas pra nós, está tudo certinho. Aqui é nosso lugar. Ninguém vai tirar de nós. Porque nós temos direito. Porque essa área não é para empresas. Para que eles fiquem mais ricos. Não é pra eles.”
 Ao mesmo tempo em que nossa solidariedade se faz presente de todas formas possíveis, na presença na aldeia, nas vigílias, num cartaz na rua, na ação direta, no apoio jurídico, temos de reafirmar que é também através da firme convicção e da persistência dos guerreiros Guarani, dos xondaros e xondarias, que nós também aprendemos a lutar! 

 Há´evete!!!