Historia, Cultura e Cosmologia Guarani

Historia, Cultura e Cosmologia Guarani

Retirado de: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani_Mbya

(Para aprofundar no estudo sobre a cultura e historia Guarani, consultar http://historiaeculturaguarani.org/ onde poderá encontrar centos de artigos, videos, audios e diversidade de recursos sobre o tópico.)

Os Mbya identificam seus “iguais”, no passado, pela lembrança do uso comum do mesmo tipo de tambeao (veste de algodão que os antigos teciam), de hábitos alimentares e expressões lingüísticas. Reconhecem-se coletivamente como Ñandeva ekuéry (“todos os que somos nós”). A despeito dos diversos tipos de pressões e interferências que os Guarani vêm sofrendo no decorrer de séculos e da grande dispersão de suas aldeias, os Mbya se reconhecem plenamente enquanto grupo diferenciado. Dessa forma, apesar da ocorrência de casamentos entre os subgrupos Guarani, os Mbya mantêm uma unidade religiosa e lingüística bem determinada, que lhes permite reconhecer seus iguais mesmo vivendo em aldeias separadas por grandes distâncias geográficas e envolvidos por distintas sociedades nacionais. A respeito dos outros subgrupos guarani que habitam o Brasil, ver a seção Guarani Kaiowa e Ñandeva.

 História, nomes e lugares

En los siglos XVI y XVII, los españoles, a medida que avanzaban en sus viajes de exploración y en sus expediciones de conquista – y los misioneros en su ‘conquista espiritual’ – encontraron a los Guaraní formando conjuntos territoriales más o menos extensos, que llamaron ‘provincias’, reconocidas por sus nombres propios: Cario, Tobatin, Guarambaré, Itatín, Mbaracayú, gente del Guairá, del Paraná, del Uruguay, los del Tape… Estas provincias abarcaban un vasto territorio que iba de la costa atlântica al sur de São Vicente, en el Brasil, hasta la margen derecha del rio Paraguay, y desde el sur del río Paranapanema y del Gran Pantanal, o lago de los Jarayes, hasta las Islas del Delta junto a Buenos Aires”. Bartomeu Melià, 1991.

Nos séculos XVI e XVII, os cronistas denominavam “guaranis” os grupos de mesma língua que encontravam desde a costa atlântica até o Paraguai. Pequenas comunidades designadas pelo nome do rio às margens do qual habitavam, ou pelo de seu chefe político, compunham a “nação Guarani”.

Cabeza de Vaca (“Comentários”) refere-se a “povoados de índios guaranis” onde parava com seus homens e guias indígenas durante expedição empreendida a partir de 1541 da Ilha de Santa Catarina até Assunção. “Essa nação dos guaranis fala uma linguagem que é entendida por todas as outras castas da província”.

Mulheres guarani mbya na aldeia de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.
Mulheres guarani mbya na aldeia de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.

Com a chegada dos conquistadores, o território ocupado pelos Guarani torna-se palco de disputas entre portugueses e espanhóis. Com o intuito de ampliar seu próprio domínio, aos espanhóis interessava “ampliar” o território de seus aliados “guarani”, sucedendo o mesmo com os portugueses e seus aliados “carijó”, sobrepondo classificações e divisões tribais segundo seus próprios interesses (cf. Ladeira, 1990, 92). Denominação dos povos que em ampla extensão de terra falavam a mesma língua, alguns povoados caracterizados como de índios rebeldes e guerreiros, e outros como pacíficos e submissos, os termos “guarani” e “carijó” (ou “cario”) foram empregados pelos cronistas e historiadores sem detalhar diferenças dialetais ou culturais.

Nos séculos XVIII e XIX, os grupos Guarani que não se submeteram aos encomenderos espanhóis nem às missões jesuíticas, refugiando-se nos montes e nas matas subtropicais da região do Guaíra paraguaio e dos Sete Povos, aparecem na literatura com o nome genérico de Cainguá, Caaiguá, Ka’ayguá ou Kaiguá. Kaygua provém de ka’aguygua, que significa “habitantes das matas”.

A partir de meados do século XX, os estudos etnográficos (Nimuendaju, Cadogan, Schaden) permitiram maior conhecimento sobre as especificidades lingüísticas, religiosas, políticas e sobre a cultura material guarani, definindo as bases para a classificação ainda vigente dos subgrupos. Recentemente, a localização dos grupos e centros de “origem” e “dispersão” são critérios considerados nas classificações e subdivisões desse grupo indígena. Embora esta classificação não corresponda às definições de grupo, origem e situação vivida pelos Guarani, ela não deve ser entendida apenas como um “formalismo classificatório” pois aponta uma definição de diferença explícita e vivenciada pelos próprios índios (cf. Ladeira, 1992).

O território atualmente ocupado pelos Mbya, Ñandeva (Xiripa) e Kaiowa, grupos Guarani que se encontram hoje no Brasil, compreende partes do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. Na região oriental do Paraguai, os Kaiowa e os Ñandéva/Xiripa são conhecidos respectivamente por Pai Tavyterã e Ava-Xiripa. Outros grupos Guarani – Guajaki, Tapiete e os conhecidos por Guarayos, Chiriguano também são encontrados no Paraguai e na Bolívia.

As aldeias Kaiowa / Pai Tavyterã concentram-se na região oriental do Paraguai e região sul do Mato Grosso do Sul. Algumas famílias kaiowa vivem, atualmente, em aldeias próximas às Mbya no litoral do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Diferentemente dos Mbya e Ñandeva que se apresentam como Guarani, os Kaiwa se apresentam como Kaiowa.

Os Ñandeva/Xiripa, no Paraguai, concentram-se na região compreendida entre os rios Jejui Guazu, Corrientes e Acaray (Perasso, 1987) e, no Brasil, vivem em aldeias situadas no Mato Grosso do Sul, no interior dos estados de São Paulo (Posto Indígena de Araribá), Paraná e Rio Grande do Sul e no litoral dos estados de São Paulo e Santa Catarina.

O termo “ñandeva” significa “nós”, “todos nós” ou “nossa gente” e é empregado por todos os Guarani. Contudo, é a única forma de apresentação daqueles que falam o dialeto que o etnógrafo Kurt Nimuendaju levantou com o nome de Apapukuva ou pelos descendentes dos grupos Tanigua, Apapukuva e Oguauiva). No Mato Grosso do Sul, os Ñandeva são conhecidos como Guarani, distinguindo-se dos Kaiowa, e no Paraguai como Ava-Chiripa, em referência à sua vestimenta tradicional.

Os Mbya estão presentes em várias aldeias na região oriental do Paraguai, no nordeste da Argentina (província de Misiones) e no do Uruguai (nas proximidades de Montevideo). No Brasil encontram-se em aldeias situadas no interior e no litoral dos estados do sul – Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul – e em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo em várias aldeias junto à Mata Atlântica. Também na região norte do país encontram-se famílias Mbya originárias de um mesmo grande grupo e que vieram ao Brasil após a Guerra do Paraguai, separam-se em grupos familiares e, atualmente, vivem no Pará (município de Jacundá), em Tocantins numa das áreas Karajá de Xambioá, além de poucas famílias dispersas na região centro-oeste. No litoral brasileiro suas comunidades são compostas por grupos familiares que, historicamente, procuram formar suas aldeias nas regiões montanhosas da Mata Atlântica – Serra do Mar, da Bocaina, do Tabuleiro, etc. (cf. Ladeira, 1992). O nome mbya foi traduzido por “gente” (Schaden), “muita gente num só lugar” (Dooley, 1982).

A população Guarani no litoral é, salvo exceções, composta pelos Mbya e Ñandeva. Segundo alguns registros (documentos do arquivo do Estado), até as primeiras décadas do século XX, os Ñandeva constituíam a maioria da população Guarani no litoral de São Paulo. Levantamentos realizados a partir das décadas de 1960 e 1970, e a crescente visibilidade das aldeias, na atualidade, comprovam que os Mbya passaram a predominar numericamente, em toda a faixa litorânea do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. Vale realçar que algumas aldeias apresentam contingente populacional composto por descendentes de casamentos mistos entre Ñandeva e Mbya (assim como no Mato Grosso do Sul, entre os Ñandeva e Kaiowa).

A organização social e as atividades desempenhadas em cada comunidade dependerá sobretudo da orientação religiosa que absorve os modos, representações e experiências, de origens ou de subgrupos diversos, criando um perfil próprio. Em aldeias onde há indivíduos de outro subgrupo, estes passam a respeitar as regras (sociais, políticas) e a adotar costumes e rituais do grupo local dominante. Mesmo se tratando de uma aldeia composta por famílias do mesmo subgrupo, nem sempre há uma autodenominação geral e consensual. Perante as instituições da sociedade nacional, identificam-se como Guarani (Ñandeva e Mbya) e Kaiowa.

São os Mbya, dentre os grupos Guarani, que vêm ocupando com continuidade áreas no litoral Atlântico. Além do motivo comum – a busca da terra sem mal (yvy marãey), da terra perfeita (yvyju miri), o paraíso aonde para se chegar é preciso atravessar a ‘grande água’ – , o modo como os grupos familiares traçam sua história através das caminhadas, recriando e recuperando sua tradição num ‘novo’ lugar, faz com que sejam portadores de uma experiência de vida e de sobrevivência também comuns (Ladeira,1992).

Assim como o sistema de reciprocidade e as vivências comuns são aspectos integradores dos Mbya, os fatores atuais de diferenciação destes com os outros subgrupos guarani residem nas divisões espaciais, em expressões lingüísticas, em elementos da cultura material (adornos, artefatos de uso ritual) e nos rituais nos quais há músicas e cantos específicos.

 População

 

Mãe e filha na aldeia guarani mbya de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.
Mãe e filha na aldeia guarani mbya de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.

A população guarani no Brasil em 2008 era estimada em torno de 51.000 pessoas, entre os Kaiowá (31.000), Ñandeva (13.000) e Mbya (7.000). No Paraguai o Censo Nacional Indígena de 2002 contabilizava a população indígena guarani em 43.080 pessoas, entre os Pai Tavyterã / Kaiowa (12.964), Ñandeva (15.229) e Mbya (14.887). Na Argentina a população guarani é quase exclusivamente Mbya e concentra-se na província de Misiones em torno de 5.500 pessoas. A população Ñandeva na Argentina é estimada em cerca de 1000 pessoas. (CTI/G. Grünberg, 2008)

A população Mbya atual estaria, segundo essas projeções, em torno de 27.380 pessoas.

Há uma unanimidade entre os autores quanto às dificuldades de quantificar os Guarani. No caso dos Mbya, uma rede de parentesco e reciprocidade se estende por todo o seu território compreendendo as regiões onde se situam as suas comunidades, implicando uma dinâmica social que exige intensa mobilidade (visitas de parentes, rituais, intercâmbios de materiais para artesanato e de cultivos etc). Desse modo, tecnicamente, seria quase impossível contar os indivíduos. Há ainda outros aspectos, entre os quais: o acesso a algumas aldeias ou moradias, dificuldades de obtenção de informações nas comunidades, e sobretudo a aversão dos Guarani aos recenseadores, pois entendem, com razão, que a contagem trata-se de uma forma de controle do Estado (conforme apontado por Melià, 1997, no Paraguai, e Brighenti, 2001, na Argentina). Levantamentos demográficos realizados isoladamente em algumas aldeias, ou mesmo informações numéricas desconectadas no tempo, prestam-se mais a desinformações e projeções infundadas, muitas vezes consideradas pelos índios como prejudiciais.

Foto: Luiza Mandetta Calagian, 2015.
Foto: Luiza Mandetta Calagian, 2015.

Genealogias realizadas entre os Mbya revelam que a rede de parentesco se estende entre aldeias situadas em todas as regiões de seu território.

 Língua

Minhas irmãs, meus parentes, nosso pai verdadeiro (Nhanderu ete)! … A nossa palavra sempre que sai da nossa boca é nosso pai que libera, nosso pai que libera a nossa fala para nós todos e para todos os que estão aqui no mundo dentre os nossos parentes. Trecho do discurso de recepção de visitantes Mbya vindos do Brasil, proferido pelo líder espiritual das aldeias de Iguaçu – Misiones, Argentina, 1997.

De acordo com o lingüista Aryon Dall’Igna Rodrigues, o Mbya, assim como Kaiowa e Ñandeva são dialetos do idioma Guarani, que pertence à família Tupi-Guarani, do tronco lingüístico Tupi. A língua Guarani é falada por diferentes grupos/povos indígenas (Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai, Bolívia) sendo que, no Paraguai, é língua oficial juntamente com o espanhol. As variações na linguagem são observadas na pronúncia e nas sílabas tônicas (a maioria das palavras guarani é oxítona), mas sobretudo no vocabulário e na sintaxe, de acordo com sistemas culturais próprios dos falantes da língua Guarani.

Em aldeias onde os Mbya convivem com os Ñandeva, como o caso de algumas situadas no interior do PR e no litoral de SP e SC, observam-se influências dialetais, sobretudo quando ocorrem casamentos mistos.

Os Guarani Mbya mantém sua língua viva e plena, sendo a transmissão oral o mais eficaz sistema na educação das crianças, na divulgação de conhecimentos e na comunicação inter e entra aldeias, constituindo-se a língua no mais forte elemento de sua identidade. Poucos Mbya, e em sua maioria representantes (ainda jovens) de seus interesses junto à sociedade nacional, falam o português com certa fluência. Crianças, mulheres e velhos são, em grande parte, monolíngües.

A escrita em língua guarani vêm sendo introduzida em aldeias Mbya com mais ênfase a partir de 1997, com a implantação de escolas bilíngües, a partir da criação dos NEIs – Núcleo de Educação Indígena, vinculados às Secretarias Estaduais de Educação e ao MEC. Entre os Mbya há reações favoráveis e contrárias ao ensino da escrita em guarani no início do ensino fundamental. Observa-se que crianças que vêm sendo alfabetizadas em guarani muito novas (entre seis e dez anos de idade) perdem a fluência e a entonação da língua materna. Por outro lado, a alfabetização na língua guarani, até o momento, se constitui no argumento mais forte das instituições oficias de que a educação escolar indígena implantada é diferenciada.

Além da linguagem usual (ayvu), os Mbya conservam uma linguagem ritual, extremamente elaborada, ayvu porã, expressão traduzida por “belas palavras”, revelada pelas divindades aos dirigentes espirituais e pronunciada em ocasiões especiais. Os discursos assim proferidos contém um vocabulário peculiar e fazem menção a conceitos especiais de ordem mítica e, em geral analisam uma situação atual.

Em uma abordagem sobre a língua e a importância da palavra entre os Guarani, Bartolomeu Melià expressa que “a arte da palavra é a arte da vida”. Assim como alma e palavra possuem o mesmo significado, o portador de uma alma (nhee) estrutura sua vida para ser “suporte e fundamento de palavras verdadeiras” (Melià, 1995).

 Relações de contato

No século XIX, os Guarani Mbya aparecem na literatura com o nome genérico de Caingua ou Kayguá. Kayguá, explica provém de ka’aguygua, nome depreciativo aplicado aos Mbya que significa “habitantes da matas” (Cadogan, 1952). Hélène Clastres (1978), entretanto, afirma que “descendem dos caiguás provavelmente os três grupos guaranis – mbiá, xiripá e paim” – que, tendo escapado dos colonos e dos jesuítas, conservaram sua autonomia porque se estabeleceram num território que, durante muito tempo, permaneceu inacessível. Daí a denominação de caaiguás ou cainguás (“gente da floresta”) que lhes foi atribuída.

Os Guarani possuem uma história antiga (desde o século XVI) e conturbada de contato, configurada pelo confisco de seu território. No Brasil, os Guarani, além de carregarem o estigma de “índios aculturados” em virtude do uso de roupas e outros bens e alimentos industrializados, são considerados como índios errantes ou nômades, estrangeiros (do Paraguai ou Argentina) etc. Esse fato, aliado à aversão desses índios em brigar por terra, via de regra era distorcido de seu significado original e utilizado para reiterar a tese, difundida entre os brancos, de que os Guarani não precisavam de terra pois nem “lutavam” por ela. Dessa forma, favorecendo os interesses fundiários e econômicos especulativos, pretendeu-se descaracterizar a ocupação territorial Guarani negando-lhes, sistematicamente, o direito à terra (Ladeira, 1992).

Os Guarani Mbya referem-se aos brancos como jurua. Não se sabe ao certo desde quando empregam esse termo, porém, hoje, ele tem uso corrente e parece destituído de seu sentido original. Jurua quer dizer, literalmente, “boca com cabelo’’, uma referência à barba e ao bigode dos europeus conquistadores. De todo modo, o nome jurua foi criado a partir do contato com os brancos colonizadores e passou, com o tempo, a ser uma referência genérica aos não índios (Ladeira, 1992). Uma das expressões empregadas para designar os brancos é etavakuére, que quer dizer ”aqueles que são maioria, que são muitos no mundo”. Essa e outras expressões, embora não sejam utilizadas na linguagem corrente, são freqüentes nos discursos proféticos ou, como dizem, na “linguagem dos antigos”.

Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Extinto pelo governo militar, deu origem à FUNAI – Fundação Nacional do Índio, criada em 1967 e que, até o momento, exerce a política indigenista do Estado. Durante a vigência do SPI, em 1913, nas mediações de Bauru (interior de SP), foram criadas reservas indígenas à serviço da frente de atração liderada por Curt Nimuendaju para atrair os Kaingang e Terena e conter os movimentos migratórios dos Guarani em direção à costa Atlântica.

Depois de uma grande epidemia que dizimou muitas famílias indígenas em Araribá, e sem conseguir atrair as famílias Ñandeva já instaladas no litoral nem impedir totalmente os movimentos Guarani em direção ao mar, foram criados o Posto Indígena Padre Anchieta na aldeia de Itariri e o PI Peruíbe na aldeia do Bananal, ambos no litoral sul de São Paulo. No Paraná também são criadas reserva indígenas Kaingang e Guarani, que impõem um modelo de agricultura, trabalho e desenvolvimento totalmente avesso ao modo de ser indígena, baseado na política vigente de integrar os índios à sociedade envolvente. Atualmente, nas regiões sul e sudeste várias administrações regionais da FUNAI abrangem administrativamente as terras dos Guarani e de outras etnias.

Além da tolerância e diplomacia, somam-se características do contato sistemático, desde a Conquista, que produziu, nos Guarani, formas muito específicas para preservarem suas tradições e estabelecerem relações com a sociedade dominante. Às custas do contato antigo e intenso com os brancos caracterizado por perseguições culturais e físicas, desenvolveram vários mecanismos para guardar e viver suas tradições culturais e religiosas, garantindo sua reprodução enquanto povo e etnia. Seus métodos não excluíram o convívio inevitável com o branco, com quem sempre procuraram manter um relacionamento amistoso. A demonstração de respeito aos costumes e religiões alheias, e o modelo de trajar-se copiado da população regional significavam, mais do que a submissão a um processo contínuo de aculturação, uma estratégia de auto-preservação (Ladeira, 1989).

No litoral do Brasil, em virtude das crescentes pressões exercidas pela sociedade envolvente, os Guarani perderam áreas que jamais poderão retomar, desviaram sua trajetória em função das novas rodovias, mas conseguiram manter as aldeias como pontos estratégicos e vitais que permitem manter a configuração de seu espaço e presença junto à Serra do Mar e à Mata Atlântica (Ladeira e Azanha, 1987).

Atualmente, as instituições de educação e saúde têm sido mais presentes nas aldeias Guarani Mbya, estabelecendo-se novas formas de relações com a sociedade nacional.

Os Guarani, devido às condições atuais de seu território, se inserem num contexto onde pressões externas e internas provocam tensões e crises que obrigam-nos a repensar e remodelar continuamente as relações de contato. Vivem o grande paradoxo de sofrerem pressões para adotarem padrões da sociedade nacional, no que se refere à educação, saúde, trabalho, moradia etc., ao mesmo tempo em que, para terem seus direitos assegurados, devem manter-se étnica e culturalmente diferenciados, vivendo “conforme seus costumes, línguas, crenças e tradições”. São criticados ou discriminados quando, aparentemente adotando modelos vigentes na sociedade envolvente, assemelham-se à população carente da nossa sociedade, da mesma forma que o são quando não adotam novas práticas de higiene e saúde, de educação, de técnicas construtivas e agrícolas etc. (Ladeira, 2001).

Apesar da tolerância e diplomacia observadas nas relações com a sociedade envolvente, atribuem aos brancos a precária situação ambiental e fundiária em que vivem. Novas lideranças têm realizado encaminhamentos para demarcação de suas terras.

 Situação fundiária e territorialidade

Tudo era livre e hoje está tudo sendo proibido para nós. Para fazer roça, como antigamente, nós já não podemos. Mas pelos menos esse pedaço de terra que estamos querendo demarcar tem que ser reconhecido, porque se tirarem de nós até esse pedacinho, não teremos mais nada. (…) Queremos a garantia da terra para viver nossa cultura com liberdade, cultivar nossa cultura, ensinar nossos filhos e nossos netos. Porque hoje em dia, com a falta de uma terra verdadeira para nós, não podemos viver nossa vida e nossa cultura (nhande reko) completamente. Trecho da carta da comunidade Morro dos Cavalos (SC) às autoridades de governo. Relatório de Identificação, 2002.

Segundo dados de 2003, nas regiões sul e sudeste do Brasil (do estado do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo) encontram-se cerca de 100 áreas ocupadas pelos Mbya e Ñandeva, além de outros locais de ocupação intermitente. Na faixa litorânea desses estados estão cerca de 60 aldeias, das quais somente 16 tiveram áreas demarcadas e homologadas pela Presidência da República até o citado ano. Diversos processos judiciais foram movidos contra a presença Guarani nessas áreas. No interior dos estados do sul, dentre as 40 áreas onde vivem índios Guarani, as 10 áreas que foram homologadas são ocupadas predominantemente pelos índios Kaingang (RS, SC, PR) e Xokleng (SC), sendo que os Guarani ocupam uma pequena porção dessa áreas. Apesar da exigüidade das áreas, mesmo algumas das terras guarani homologadas contam ainda com ocupantes não índios em seu interior.

Comunidade Guarani Mbyá de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.
Comunidade Guarani Mbyá de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.

A regularização das áreas ocupadas pelos Guarani Mbya no litoral teve sua origem através de iniciativas e projetos do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), a partir de 1979 nas aldeias da capital de SP e litoral de SP e RJ e de ações do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), nas aldeias do litoral sul de SP. Até meados da década de 1980 em toda a faixa do litoral eram reconhecidas oficialmente, por decretos estaduais a aldeia do Bananal (Posto Indígena de Peruíbe – SP) em 1927, e a aldeia de Itariri – SP, em 1962. A aldeia de Parati Mirim também teria sido reconhecida, em 1960, por ato informal do governo do Rio de Janeiro. Em 1983, o CTI encaminha ao Governo de SP (Franco Montoro/PMDB), um dossiê sobre as aldeias guarani do estado de São Paulo e um projeto para sua regularização fundiária. Diante do interesse do governo estadual em regularizar as áreas ocupadas pelos Guarani de SP, a FUNAI assina convênio com o governo de São Paulo, em 20/12/84, para demarcação das áreas indígenas, homologadas em 1987.

A partir do início dos anos 1980, o reconhecimento oficial e a demarcação das aldeias Guarani tornou-se urgente devido ao crescimento de projetos imobiliários e turísticos decorrente da construção da rodovia Rio-Santos e de estradas adjacentes. Posteriormente, pressões ambientais e ocupações desordenadas decorrentes de projetos de desenvolvimento (saneamento, abastecimento, estradas e rodovias como a duplicação da rodovia BR 101, no sul) exigiram maiores articulações dos Guarani e seus aliados, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Após a Constituição Federal de 1988, conquistas foram obtidas com o reconhecimento de algumas áreas no litoral. Entretanto, por constituírem uma população diferenciada etnicamente e minoritária nos diversos contextos regionais, as pressões e as tentativas de controle de suas dinâmicas sociais e territoriais são constantes.

Embora os procedimentos administrativos oficiais vigentes não dêem conta da complexidade da situação fundiária das Terras ocupadas pelos Guarani, nos últimos anos novas terras vem sendo identificadas pela FUNAI.

Território

Os Guarani Mbya mantém a configuração de seu “território tradicional” através de suas inúmeras aldeias distribuídas em vasta região abrangendo regiões no Paraguai, na Argentina, no Uruguai e no Brasil, constituindo-se o mar seu limite terreno. Assim, para os Mbya, o “conceito de território” supera os limites físicos das aldeias e trilhas e está associado a uma noção de “mundo” que implica na redefinição constante das relações multiétnicas, no compartilhar espaços etc. O domínio de seu território, por sua vez, se afirma no fato de que suas relações de reciprocidade não se encerram exclusivamente nem em suas aldeias, nem em complexos geográficos contínuos. Elas ocorrem no âmbito do “mundo” onde se configura este seu território. Desse modo, o domínio de um amplo território pelos Guarani acontece através das dinâmicas sociais, econômicas, políticas e de movimentos migratórios realizados ainda hoje sobretudo por famílias do subgrupo Mbya (Ladeira, 1997).

O território ou mundo Guarani Mbya, enquanto espaço cartográfico e geográfico, é fragmentado e compartilhado por diferentes sociedades e grupos sociais. Em contraposição, as aldeias ou tekoa – “lugar onde vivem segundo seus costumes e leis” – não podem abrigar outros grupos humanos. O espaço físico de um tekoa deve conter recursos naturais preservados e permitir a privacidade da comunidade. Entretanto, a fragmentação atual das aldeias, definidas por limites artificiais em função do reconhecimento público e oficial de outras ocupações (tais como fazendas, loteamentos, estradas, projetos de abastecimento etc.), inviabiliza-as enquanto espaço que garanta a subsistência da própria comunidade. Apesar disso verifica-se, nas diversas aldeias, um modo peculiar de apreensão, construção e organização do espaço, desenvolvido através do exercício social, político, religioso e do manejo de espécies tradicionais.

Embora a proximidade geográfica favoreça o estreitamento das relações sociais entre as aldeias, devemos considerar que a sociedade Guarani possui regras, costumes e tradições das quais participa todo o seu conjunto.

Os índios Guarani Mbya do litoral procuram fundar suas aldeias com base nos preceitos míticos que fundamentam especialmente a sua relação com a Mata Atlântica, na qual, simbólica ou praticamente, condicionam sua sobrevivência. Esses lugares, procurados ainda hoje pelos Mbya, apresentam, através de elementos da flora e da fauna típicos da Mata Atlântica, de formações rochosas e mesmo de ruínas de edificações antigas, indícios que confirmam essa tradição. Formar aldeias nesses lugares ‘eleitos’ significa estar mais perto do mundo celestial, pois, para muitos, é a partir desses locais que o acesso a yvy marãey, ‘terra sem mal’, é facilitado – objetivo histórico perpetuado pelos Mbya através de seus mitos (Ladeira, 1992, 1997).

 Organização social, política e religiosa

 

Avó e neta na aldeia guarani mbya de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.
Avó e neta na aldeia guarani mbya de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.

Os lugares onde os Guarani formam seus assentamentos familiares são identificados como tekoa. Conforme tradução de Montoya (1640), Tekoa significa “modo de ser, de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, costumes”. Tekoa seria, pois o lugar onde existem as condições de se exercer o “modo de ser” guarani. Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que permitem compor, a partir de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião e na agricultura de subsistência (Ladeira, 1992, 97).

Para que se desenvolvam relações de reciprocidade entre os diversos tekoa Mbya é preciso, pois, que estes, em seu conjunto, apresentem certas constantes ambientais (matas preservadas, solo para agricultura, nascentes etc.) que permitam aos Mbya exercerem seu “modo de ser” e aplicar suas regras sociais.

As aldeias Guarani podem ser formadas a partir de uma família extensa desde que tenha uma chefia espiritual e política própria. O contingente populacional das aldeias Guarani Mbya varia, em média, entre 20 a 200 pessoas, compondo unidades familiares integradas pela chefia espiritual e política. A organização espacial interna das aldeias é determinada pelas relações de afinidade e consangüinidade.

Segundo os padrões tradicionais Guarani, a família extensa é composta, em princípio, pelo casal, filhas, genros e netos, constituindo-se numa unidade de produção e consumo. Atualmente, a família extensa, ainda que tenha algumas variantes na sua composição, é a unidade de produção. Porém, a “propriedade” das roças e o consumo dos produtos é da família elementar, depois do nascimento dos filhos do casal. Isto não exclui os serviços nas roças do sogro e a realização de mutirões entre as famílias.

Entre os Mbya, a liderança espiritual é exercida pelo Tamoi (avô, genérico) e seus auxiliares (yvyraija), podendo ser exercida também por mulheres Kunhã Karai. Atualmente, cada comunidade tem um chefe político, o cacique, ao qual estão subordinadas jovens lideranças para intermediar nas relações entre a comunidade indígena e os representantes do Estado e vários setores da sociedade civil. Até meados da década de 1990 era comum, entre os Mbya, o líder espiritual e religioso exercer também a chefia política na comunidade. Em períodos de muitas atribulações decorrentes do contato, como ocorre atualmente, esta prática é impossível pois o líder espiritual precisa ser preservado.

Casa de reza

Os Mbya (e os Ñandeva) constroem e mantém uma casa para a prática de rezas e rituais coletivos, opy guaçu, localizada próxima ou mesmo agregada à casa do tamõi.

As práticas religiosas dos Mbya são freqüentes e se estendem por muitas horas. Orientadas pelo dirigente espiritual as “rezas” – realizadas através de cantos, danças e discursos – também voltam-se às situações e necessidades corriqueiras (colheita, ausência ou excesso de chuva, problemas familiares, acontecimentos importantes, imprevistos etc.).

A principal cerimônia realizada na Opy é o Nheemongarai, quando os cultivos tradicionais são colhidos e “abençoados” e são atribuídos os nomes às crianças nascidas no período. O nheemongarai deve coincidir com a época dos ‘tempos novos’ (ara pyau), caracterizado pelos fortes temporais que ocorrem no verão. Assim, a associação entre a colheita do milho e a cerimônia do seu ‘benzimento’ e da atribuição dos nomes-almas impõe o calendário agrícola e a permanência das famílias nas aldeias (Ladeira, 1992).

O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo. Entre os autores, León Cadogan, é o que realizou a maior compilação de mitos clássicos e contos Mbya. Por sua vez, os Mbya vêm incorporando, ao seu acervo mitológico, interpretações e acontecimentos vividos e veiculados entre eles, ao longo de sua história. Para os Mbya o cotidiano está impregnado de relações míticas, advindas da comunicação com as divindades. Assim, “as tradições são postas em prática secularmente, segundo os princípios dos mitos que fundamentam o pensamento e ações dos Mbya” (Ladeira, 1992).

 Sistema produtivos

O ciclo das atividades (subsistência e rituais) é definido por dois tempos que equivalem a duas estações: ara pyau e ara yma. A esses tempos correspondem o “calor” (primavera-verão) e o “frio” (outono-inverno).

Para os Guarani, a agricultura é a atividade estrutural da vida comunitária. Pode-se dizer que, para os Mbya o significado da agricultura se encontra na sua própria possibilidade de realização e no que isto implica: organização interna, reciprocidade, intercâmbios de sementes e espécies, experimentos, rituais, renovação dos ciclos. Desse modo, a agricultura faz parte de um sistema mais amplo que envolve aspectos da organização social e princípios éticos e simbólicos fundamentados antes na dinâmica temporal de renovação dos ciclos, do que na quantidade e disponibilidade de alimento para consumo (Ladeira, 2001). Pode-se dizer que os Mbya não vivem da agricultura, porém não vivem sem ela.

Os Guarani possuem cultivos tradicionais (variedades de milho e outros grãos, tubérculos etc.) que impõem cuidados maiores na observação das regras e dos períodos de plantio e colheita porque, ao contrário dos outros cultivos, interagem com as demais esferas da vida e sua reprodução é condicionante para a realização dos rituais, sobretudo do nheemongarai. Esta cerimônia é exclusiva às plantas tradicionais, isto é às variedades cultivadas secularmente pelos Guarani, que não misturaram-se às espécies alheias. Aos cultivares dos brancos os Mbya chamam genericamente de tupi (avati tupi, Kumanda tupi – “feijão”).

As áreas cultivadas possuem, em média, 1/2 a 3 ha, dependendo da disponibilidade e qualidade da terra e da força de trabalho. Plantam frutíferas e espécies utilizadas como remédios ao redor das casas. Coletam frutos silvestres e material (paus, cipós, taquaras, palhas etc.) para confecção de artesanato, pequenas armadilhas e casas.

Embora sendo fonte de alimento, a caça não é prática corriqueira entre os Guarani. Essa atividade envolve outros significados práticos e simbólicos que só terão continuidade com a sobrevivência das espécies. Possuem regras rigorosas de consumo que implicam em seletividade e sazonalidade. A atividade de caça, apesar de sua importância social e cultural, vem diminuindo em razão da fragmentação das áreas de mata e de outros agentes de pressão na fauna da Mata Atlântica.

O artesanato é uma atividade que foi incorporada pelos Guarani e implica em várias etapas de trabalho. O produto é um bem que pertence à família (família nuclear) em todos os seus aspectos (criação, valor, etc.), sendo de sua responsabilidade todo o processo de realização – coleta e corte de matéria prima na época certa (observando o calendário lunar), qualidade do material (natural e artificial) e da confecção, guarda, preço e venda. As tarefas, da produção à venda, são distribuídas entre os membros da família, segundo critérios de idade, sexo e aptidão. Esta atividade também se insere na dinâmica de intercâmbios (matéria prima e peças) entre famílias. Até o momento, os Guarani mantém a autonomia e controle da mesma, o que garantiu a sua inserção e incorporação no conjunto de suas práticas tradicionais. Todavia, os artefatos de uso (doméstico, ritual, corporal) não se confundem com os produzidos para a venda.

De um modo geral, os Guarani Mbya poucas vezes trabalham fora da comunidade e quando o fazem é sempre de forma temporária. Sendo assim, o comércio do artesanato é ainda a principal fonte de renda.

Nos últimos anos alguns jovens vêm sendo contratados como agentes sanitários e de saúde e professores indígenas, pelo Estado.